Modelos de formação cristã e culturas contemporâneas - IV
Imanência
Uma das características da
cultura actual, naquilo em que prolonga a herança da modernidade ocidental –
esta reflexão está situada no Ocidente e não seria assim no Oriente –, é sem
dúvida a tendência para a afirmação da positividade do mundo imanente. As
realidades terrenas, mesmo na sua materialidade própria e nos processos
internos de interacção, foram sendo progressivamente assumidas e valorizadas na
sua autonomia própria. É certo que essa perspectiva possui profundas raízes
bíblicas, mas não é menos certo que a história do cristianismo ocidental muitas
vezes se desviou dessa compreensão do real, favorecendo uma leitura «gnóstica»
do mundo, com base numa ambígua concepção de transcendência e da sua relação
com a imanência. Assim sendo, a tendência «mundanizante» da modernidade pode
ser lida como possível recuperação do espírito bíblico, sobretudo do espírito
cristão da Incarnação.
Nos últimos séculos da
história ocidental, uma cultura predominante e quase exclusivamente espiritual
e orientada para um outro mundo, foi dando lugar a uma cultura incarnada,
terrena, concentrada nos processos biológicos, sociais e pessoais que
acompanham o real quotidiano dos seres humanos. No seu extremo, essa posição
conduziu mesmo à contraposição da imanência à transcendência, pretendendo como
falsa toda a referência a esta. Mas essa versão radical não foi a única nem
invalida os elementos positivos da valorização do mundo concreto, que constitui
a vivência dos nossos contemporâneos.
Essa valorização foi
acolhida, progressivamente, pela própria Igreja, revendo nela a sua mais
profunda e antiga tradição bíblica, cujas matrizes criacional e incarnacional
não permitem a condenação do mundo, enquanto tal. A ambiguidade desse mundo e
mesmo o problema do mal, embora não permitam uma aceitação total do actual
estado das coisas, tal como se nos apresentam, não pode contudo conduzir a uma
fuga deste e à anulação da sua pertinência, mesmo salvífica. A caminho da
perfeição, a criação e a humanidade sofre, mas já caminha no processo de
salvação. O reino de Deus já cresce cada dia e o Espírito continua a suscitar
nos corações sentimentos de liberdade e de amor.
Neste contexto cultural –
por razões teológicas e não apenas de «adaptação» – torna-se especialmente
pertinente praticar uma transmissão da fé de forma incarnada, que leve a sério
as realidades mundanas em que vivemos, mesmo nos casos em que é necessário
criticá-las profeticamente. A fé não pode ser reduzida a mera atitude
espiritual. De igual modo, a sua transmissão terá que assumir configuração
pragmática, quotidiana e localizada, orientando-se para o compromisso incarnado
de quem a acolhe.
Ora, uma das ambiguidades da
nossa cultura, que acompanha o crepúsculo da modernidade, reside precisamente
nas diversas formas de recuperação do gnosticismo, que podem conduzir à
reinstauração de uma vivência desincarnada do real. Quer no âmbito do movimento
neo-religioso sectário de teor «New Age», quer no interior da actual cultura
mediático-virtual, a dinâmica da incarnação corre sérios riscos, podendo os
nossos contemporâneos ser permanentemente conduzidos para um mundo de ilusão,
onde facilmente serão manipulados.
Perante esse perigo real, assume
redobrada importância um modelo de transmissão da fé incarnado na história
concreta dos interlocutores. Privilegiará as relações inter-pessoais directas,
num leque de tempos e espaços reais, enquadrado em instituições locais e
próximas – das quais, uma das mais eficazes é ainda a comunidade paroquial,
mesmo se desmembrada em muitos grupos mais pequenos, porque mais concretos e
personalizados.
A localização e a incarnação – e a consequente glocalização digital –, no processo de transmissão da fé, poderão ainda contribuir para enfrentar o crescente processo de indiferença política dos nossos contemporâneos, sobretudo dos mais jovens. A aprendizagem pragmática da participação e do compromisso sócio-político, a nível de pequenos grupos ou de instituições locais será um dos caminhos mais eficazes para experimentar a importância – enquanto direito e dever – da actividade política, assim como para manifestar claramente a dimensão sócio-política do próprio conteúdo da fé cristã (Cf. LF).
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