Modelos de formação cristã e culturas contemporâneas - I
As culturas contemporâneas –
na fisionomia que especificamente vão assumindo no chamado «mundo ocidental»,
de influência predominantemente europeia – levantam, como em qualquer outra
época ou parte do mundo, desafios específicos à permanente tarefa eclesial da
transmissão da fé e, também, à formação cristã, enquanto anúncio da Boa Nova
salvífica de Jesus Cristo às gerações futuras. Desses desafios, podem
salientar-se alguns que, de certo modo, irão ter mais incidência no quotidiano
da missão da Igreja.
Pluralidade de vivências
Em primeiro lugar, a nossa constelação
cultural está profundamente marcada pela percepção da pluralidade das vivências
culturais dos humanos, as quais abundantemente se diferenciam no espaço e no
tempo. Mesmo que se possa discutir se o nosso espaço cultural ocidental, em si
mesmo, é um espaço culturalmente plural, o certo é que está habitado claramente
pela consciência, difundida entre os nossos contemporâneos, de que existem
distintas visões do mundo e formas de nele estar, sobretudo se pensarmos em
termos globais.
Nesse contexto, o
cristianismo surge, frequentemente, como uma dessas visões ou perspectivas,
entre muitas outras possíveis. Para além disso, é frequente considerar-se que a
visão cristã do mundo e do ser humano marcou sobretudo a cultura
ocidental-europeia, distinguindo-a, assim, de outras matrizes culturais muito
diferentes – como a árabe, a oriental, a africana, etc. A essas distinções
juntam-se conotações e ligações mais ou menos religiosas, que contribuem para a
construção (pelo menos mental) de mundos religioso-culturais pretensamente bem
definidos: cristão, muçulmano, hindu, budista, animista, etc.
Nesse contexto de
predominante leitura da nossa actual realidade, o anúncio da Boa Nova cristã
apresenta-se, por vezes, como proposta alternativa, contraproposta ou mesmo
denúncia profética e aguerrida em relação a outra matrizes culturais – de certo
modo, em clara analogia com a forma como a Igreja dos primeiros séculos
enfrentou o mundo greco-romano, mesmo se já então as posições fossem muito
variadas e diferenciadas.
Esta perspectiva de «choque
de culturas», que contém sempre algo de «bélico» ou mesmo apocalíptico e que
pode alinhar por uma espécie de «conflito de civilizações», mesmo no interior
do nosso espaço cultural, precisa de ser analisada com cuidado – não
propriamente com medo, mas com demorada atenção. De facto, não se pode excluir
de todo o facto de que a Boa Nova evangélica constitui, em muitos casos,
alternativa profética em relação a outras perspectivas religiosas e culturais,
quando essas perspectivas negam ou contradizem frontalmente o núcleo do
conteúdo da fé cristã, contradizendo na prática a correspondente noção de ser
humano. Assim, transmitir a fé cristã num mundo em que abundam conteúdos e
propostas, da mais diversificada origem e com as mais diversificadas
consequências antropológicas e sociais, implica clareza e coragem de enfrentar
o que deve ser enfrentado, numa «cruzada» que tenha noção de que a ambiguidade
da nossa situação não coloca de parte a eventual exigência de denunciar
situações que, em perspectiva cristã, anulam a própria humanidade do ser humano.
De qualquer modo, não se
pode assumir essa posição de conflito apocalíptico com outras culturas como
total e radicalmente exclusiva. Já os cristãos dos primeiros séculos nos
ensinaram que as «sementes do verbo» se encontram espalhadas pelo mundo, por
isso também noutras tradições culturais e religiosas. Assim, o confronto com
outras propostas, não abandonando a coragem da denúncia e a clareza das
diferenças, deverá também estar aberto à proximidade das semelhanças e dos
elementos que, em comum, nos podem conduzir à casa do mesmo Pai. Assim sendo, a
transmissão da fé numa cultura da diferença terá que aprender a lidar com essa
diferença, sem diluir a identidade própria.
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