Uma cultura com sentido. O desafio dos média! *
A sociedade
actual é animada pela comunicação, e apesar de se terem descoberto nela
limitações, contradições e práticas que a obrigam a adaptar-se e a
transformar-se, muitas das suas estratégias permanecem ainda ocultas, ambíguas.
Muitas das suas consequências são-nos ainda desconhecidas. É necessário
compreendê-las, uma vez que a mentalidade resultante daqui modela a cultura, e
os modos de pensar tornam-se diferentes dos do passado: a técnica progrediu
tanto que transforma a face da terra e tenta já dominar o espaço.
O progresso que se faz sentir é imparável: a ciência e a
técnica continuarão a desenvolver-se segundo uma lógica que lhes é imanente e
necessária, na qual cada indivíduo é chamado a tomar responsabilidades. Importa
achar os meios mais adequados para lhes limitar os danos. Assim, o mundo
tecnológico apresenta-se como algo de enigmático aos nossos olhos, tanto mais
que acarreta consigo um estado de crise preocupante. Esta é-o porque não tem
paralelo com nenhuma época anterior. A especificidade desta vem-lhe da enorme
mudança que a caracteriza.
A resposta à
questão do sentido era, normalmente, herdada do ambiente familiar, social ou
religioso circundante. Há, pois, uma infinidade de sentidos, desde os
primórdios da humanidade até hoje. Exemplo disso são a história das religiões,
da filosofia e da literatura. E mesmo da arte. Hoje não é assim.
Perante as
diversas vagas de sentido, que chegam até a contradizer-se, surge a inevitável
pergunta se não haverá um verdadeiro sentido que acabe por se impor? Pode surge
a postura que reconhece o homem sedento de absoluto,
que não se realiza nesta vida, sem contudo negar a possibilidade de vir a
realizar-se. Perante a morte, a radicalidade do problema humano faz emergir na
consciência a aspiração que o habita: realizar-se infinitamente. «Queria era
sentir-me ligado a um destino extrabiológico, a uma vida que não acabasse com a
última pancada do coração»(Miguel Torga).
A partir da morte pode reconhecer-se, também, a impotência
do homem para construir sozinho a sua realização. «O homem é um animal
compartilhante. Necessita de sentir as pancadas do coração sincronizadas com as
doutros corações, mesmo que sejam corações oceânicos, insensíveis a mágoas de
gente. Embora oco de sentido, o rufar dos tambores ajuda a caminhar. Era um
parceiro de vida que eu precisava agora, oco tambor que fosse, com o qual
acertasse o passo da inquietação»(Miguel Torga). É aqui se abrem duas
hipóteses: ou o homem reconhece que a vida terrena — projecto e aspiração a ser
mais — tem sentido e abre a possibilidade da esperança de um futuro
transcendente; ou aceita que a vida não tem sentido e é o desespero total.
A descoberta do
sentido para a vida, integrando o sentido da morte, revela a precariedade e a
finitude de uma vida sobre a qual assenta o desejo de absoluto que se espera. É
a descoberta da liberdade ansiada, aquela que se tem devido a uma liberdade
transcendente. O desejo de liberdade infinita do homem dá lugar à descoberta da
condição de possibilidade da liberdade humana: Deus. A realização humana surge
a partir do ser pessoa, da relação.
Mas o sentido é
um dom, oferecido pelo mistério do Verbo encarnado. «Na realidade, o mistério
do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. [...] Cristo,
novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o
homem a si mesmo e descobre-lhe a vocação sublime»(GS 22). O mistério do homem
revela-se através do mistério de Cristo, chamado a participar da sua filiação.
Quando o homem descobre que é amado pelo Pai, em Cristo e através do Espírito,
revela-se a si mesmo, descobre a grandeza de ser objecto da benignidade divina,
receptor do amor do Pai revelado em Cristo. O mistério trinitário é o único
capaz de realizar o homem, é o «mistério iluminador» do sentido (René
Latourelle). A expressão desse mistério faz-se pela vivência da comunhão, onde
o ser «não sem os outros» (Michael de Certaux) impele para a solidariedade e
para o diálogo. Miguel Torga escreve que «a Bíblia, o livro dos livros, nos
ensina que não há homem sem homem, e que o próprio Cristo teve, a caminho do
Calvário, a fortuna dum cireneu para o aliviar do peso da cruz (a dor incurável
da solidão). Para mim, pelo menos — continua Torga —, feito dum barro tão
frágil e vulnerável, que necessito de ser amado durante a vida e de acalentar a
esperança de continuar a sê-lo depois da morte».
Jesus Cristo,
através da sua vida e pregação, é o mediador do sentido, o único intérprete dos
problemas humanos. Em Cristo, o homem pode compreender, realizar e superar-se
continuamente; pode ver, por fim, realizada a sua identidade. O ser insaciado,
sacia-se.
Falar do homem é
falar de comunicação, já que o ser humano não pode passar sem comunicar;
partilhando com o outro as suas intuições, verifica a sua validade. É este
exercício que impele o homem para uma vida comunitária.
À teologia cabe o
«estudo sobre Deus», de um Deus que quer estar em relação estreita com o homem:
por isso, as questões deste devem ser tidas em conta por aquela ciência, em
ordem a uma oferta de alternativas válidas, dialogadas com as categorias de
pensamento usadas pelo homem contemporâneo.
Deus, numa
relação de amor salvífico com o homem, sai do Seu mistério, revelando-se. O
homem, convertendo-se, responde com a fé à verdade transformadora. Por isso,
continua a ser tarefa prioritária dizer, hoje, a Revelação.
A Palavra de Deus
apresenta-se, no Antigo Testamento, sob muitos aspectos, mas mantém a
característica de ser uma palavra que, simultaneamente, revela e esconde: não
se deixa reduzir a simples significados verbais. No Novo Testamento, esvai-se a
diferença de níveis de comunicação entre Deus e o homem, provenientes das
diferentes naturezas. Jesus Cristo possibilita o encontro face-a-face de Deus
com o homem, numa comunicação em que o emissor e o receptor se situam nas
mesmas coordenadas de espaço e de tempo. Assim, Cristo é o comunicador
perfeito, «na medida em que nele encontramos concentrada e realizada a imagem
da possibilidade de realização da comunicação ideal» (M. Carnicella), expressão
da totalidade, sem lugar para equívocos.
«Sabendo Jesus que chegara a Sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele que amara os Seus que estavam no mundo, levou até ao extremo o Seu amor por Eles»(Jo13 , 1). E o auge da doação: «a palavra articulada faz-se palavra imolada» (René Latourelle). Na Cruz, Jesus Cristo mostra o amor de Deus aos homens; a palavra de Deus esgota-se até ao silêncio. A hora da morte e do silêncio é a suprema expressão do amor oferecido à humanidade. Aquilo que na comunicação divina é incomunicável diz-se agora com os braços estendidos e o corpo dilacerado.
No acontecimento ressurreição — onde a humanidade de
Cristo se torna veículo para a expressão e manifestação da Sua divindade —,
Cristo ratifica-se como código e como chave interpretativa do código que
permite penetrar a mensagem divina sem equívocos.
Face a Cristo, o
«comunicador perfeito», subsistem ainda ruídos, provenientes do homem, da sua
mesquinhez, do medo e da incapacidade para se interrogar. A comunicação
perfeita só se realiza num contexto escatológico, onde o ruído é anulado e o
homem entra em comunhão perfeita com Deus, num perpétuo e sempre novo diálogo.
À luz deste
acontecimento, a relação entre o homem e Deus é, pois, reflexo do diálogo
trinitário, gerador de comunhão amorosa, na qual o homem é chamado a
participar. Apesar da dificuldade do cidadão hodierno — fechado sobre si e
incapaz de se situar perante o dom —, é preciso continuar a anunciar o Deus que
se fez homem e que diviniza a humanidade pela comunicação do seu ser pessoal.
Dizer esta
notícia, com honras de primeira página, obriga a descobrir, em conjunto com os
vários saberes, outros métodos de comunicar, que integrem a fé e evitem o
absurdo. Processo capaz de ser realizado por aqueles que falam como se vissem o
invisível, sempre em busca de novos métodos de contar a verdade, marcados
sempre pelo imprevisível.
Nesta dinâmica, o cidadão «acabará por sentir, no mais
íntimo da sua humanidade, o apelo duma Proposta transcendente, que foi por
vezes rejeitada enquanto expressa em paradigmas ultrapassados, mas que surge
agora, nova e disponível, para a reinvenção do futuro»(Luís Archer). De um
futuro com um Deus tão transcendente que não se deixa reduzir a simples
verbalizações que aprisionam, mas tão próximo que chama cada homem, do âmago de
uma nova cultura, a uma comunicação libertadora.
A fé, deste modo, não
só dialoga com as diversas culturas como é capaz de gerar uma nova cultura.
[* Este texto é o resultado de uma releitura de outros postes e ideias já expressas neste blogue, a propósito do 47º Dia Mundial das Comunicações Sociais]
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